O Brasil caminha, de forma singular, na regulação das apostas esportivas de quota fixa. Nesse trajeto, passos importantes foram dados em meados de julho de 2021, com a sanção da Lei nº 14.183/2021, que altera pontos fulcrais da Lei nº 13.756/2018, responsável por introduzir as apostas esportivas em território nacional. É certo que o caminho da regulamentação ainda pende de detalhamentos importantes, sobretudo em termos de tributação. Mas agora está em voga como regular e não mais se liberar ou não essa modalidade de apostas. Uma regulação eficiente é benéfica ao país e se traduz na real efetividade da legislação, estímulo de investimentos, segurança jurídica, fomento da atividade, sustentabilidade do setor e desenvolvimento, com ganhos sociais e econômicos.
A peculiaridade das apostas esportivas tal como concebidas é relacionada à sua inserção dentre as modalidades lotéricas. Com efeito, a Lei nº 13.756/2018, ao dispor sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), cria em seu art. 29 a modalidade lotérica “aposta de quota fixa”. Nos termos do seu § 1º, a dita modalidade “consiste em sistema de apostas relativas a eventos reais de temática esportiva, em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico”. O que o dispositivo especifica é que, diferentemente das apostas parimutuais, do qual o maior exemplo que temos o turfe, onde o ganho é estimado a partir do número de apostas realizadas e é conhecido apenas quando do seu fechamento, no caso, está-se diante de jogo bancado. Bancado porque, independentemente do número de apostadores e montante arrecadados, o resultado do potencial ganho já tem montante previamente fixado. Significa que a casa também “aposta” e também pode, eventualmente, ter resultados negativos.
OS AVANÇOS DA NOVA LEGISLAÇÃO
O problema não está aí, porém, por mais intrigante que a contextualização de apostas esportivas como loterias se demonstre. A grande incongruência da legislação originária estava em atrelar o produto total da arrecadação, o que contabilizaria inclusive a premiação, aos percentuais de repasses tributários destinados ao FNSP, às escolas públicas e clubes de futebol, nos termos da anterior redação dada ao art. 30 da Lei nº 13.756/2018. Ou seja, ainda que parcela substancial do ingresso de valores via apostas fosse direcionado ao prêmio (que, na redação originária da lei, tinha percentuais já preestabelecidos de 80% e 89%, dependendo do ambiente físico ou online em que realizadas, respectivamente), o cálculo se daria sobre montante bruto, conhecidamente, sobre o turnover da rodada. Logo, o operador, para além de bancar eventual resultado da aposta fixa, teria que exponencializar potencial perda por meio de repasses tributários que consideravam como base de cálculo o produto global da arrecadação. Graças à recente lei, essa distorção tributária, que levaria à derrocada de investimentos e de atratividade do mercado de forma prematura, foi corrigida em parte.
Agora, aliando-se às melhores práticas no âmbito internacional, os ditos repasses ao FNS, escolas públicas e clubes de futebol incidem sobre o Gross Gambling Revenue (GGR), traduzindo: sobre a receita bruta do jogo, isto é, o produto da arrecadação menos (1) a premiação, cujo percentual não é agora definido previamente; (2) o imposto de renda incidente sobre ela, com tributação exclusiva de 30%, e (3) a contribuição para a seguridade social, de 0,1% para as apostas realizadas em meio físico, e de 0,05% para aquelas conduzidas em ambiente virtual. É um avanço, ainda que parcial. Isto porque inúmeros aspectos relacionados às questões tributárias, em especial quanto ao turnover ainda considerado como base de cálculo às contribuições sociais e sobre a tributação exclusiva incidente sobre os prêmios, permanecem controversos e em aberto.
Os desafios que a matéria das apostas esportivas -e a sua iminente regulação implica- são variados. No entanto, a definição da base de cálculo dos referidos repasses, agora atrelados ao GGR, é matéria de reserva legal, e somente por meio de lei poderia ser modificada e corrigida, ou por meio do Judiciário. Com custos, neste último caso, porém, muito mais elevados. Em termos estritos, a base de cálculo integra um sistema constitucional que preza pela legalidade, proporcionalidade e adequação à capacidade contributiva. No campo das externalidades, ao se tributar de forma incoerente a indústria, o mercado clandestino ganha uma mola propulsora, e os nobres objetivos almejados pela legislação acabam sendo solapados.
A NECESSIDADE APERFEIÇOAR A ESTRUTURA REGULATÓRIA EM FORMAÇÃO
É certo que a lei que criou as apostas de quota fixa não tem condição nem pretensão de extrapolar a rica temática sujeita à regulação legal e infralegal. Sabe-se, porém, que a tributação correta, indutora de estímulos que evitem uma seleção adversa de operadores e corporifiquen atividades atrativas para as apostas, está no âmago de uma regulação equilibrada e perene. A maturidade com que esse pressuposto material da base de cálculo em relação aos repasses tributários foi recentemente tratado -e de antemão corrigido- já é um indicativo do leque amplo de possibilidades com que a regulação pode ser conduzida.
Inúmeras consultas públicas já foram realizadas, e os interessados podem (e devem) se manifestar no intuito de aperfeiçoar a estrutura regulatória em formação. Quanto mais pontos de vista forem considerados, melhores serão as chances de se conceber um ambiente que consiga unir a paixão ao esporte às apostas em meio alternativo de angariar recursos, por vezes direcionados a jurisdições estrangeiras, ao desenvolvimento nacional. Uma tributação não proibitiva está no alicerce dessa edificação. Quanto mais clara a legislação de base se torna, melhor refinamento ulterior a regulamentação se pode propor.
Do contrário, tem-se considerável insegurança jurídica cujos custos, ao fim e ao cabo, acabam sendo repassados à sociedade. Alguns pontos ainda merecem especial atenção e possível reformulação, como será exposto nas próximas contribuições a essa coluna. No presente, muito importa que já se tem um novo ponto de partida para os repasses tributários previstos pela atual redação do art. 30, § 1º-A da Lei nº 13.756/2018. E com este marco, um novo motivo para continuar apostando nessa jogada.
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