O ambiente regulatório para apostas e apostas de quota fixa no Brasil evoluiu exponencialmente e uma discussão específica surgiu e ganhou força nos últimos anos: como serão abordadas as questões de territorialidade entre competência Federal x Estadual? Após a decisão do Supremo Tribunal Federal em 2020, que declarou inconstitucional o monopólio de exploração de modalidades lotéricas reservadas ao Governo Federal, tem havido um debate sobre como regular a atividade, especialmente aquelas que operam em ambiente virtual, para garantir um mercado justo e competitivo.
As loterias dos estados do Paraná e do Rio de Janeiro estão atualmente em conflito entre si e com o Governo Federal pela imposição de limites territoriais às suas atividades. O Ministério Federal da Fazenda interveio no assunto. Além das divergências entre os entes federais e estaduais, a discussão agora envolve também as loterias municipais.
UM POUCO DE HISTÓRIA
Em 2018, foi promulgada a Lei Federal 13756 que autorizou a exploração de apostas esportivas de quota fixa como modalidade lotérica. Foi concedido ao Governo Federal um prazo de dois anos, prorrogável por mais dois anos, para regulamentar a lei e lançar o mercado. Porém, até o prazo estipulado de 2022, nenhuma regulamentação federal havia sido estabelecida. Mesmo assim, o mercado e a indústria de apostas esportivas já haviam ganhado força no país. Isto ficou evidente através da publicidade e do patrocínio de atividades de apostas e jogos, e da conhecida presença ativa de plataformas de apostas offshore.
Em 2023, na sequência de uma mudança na liderança governamental, a regulamentação das apostas esportivas de quota fixa foi considerada uma questão de alta prioridade, especialmente por razões de arrecadação de impostos. Para abordar questões regulatórias, o Governo apresentou o Projeto de Lei 3626 na Câmara dos Deputados, cobrindo os assuntos mais urgentes, como custos de solicitação de licença, questões tributárias, proibições, obrigações e temas de fiscalização, entre outros.
Já em dezembro de 2023, o Projeto de Lei 3626 foi aprovado e subsequentemente transformado em Lei 14790/23. Durante as discussões finais na Câmara dos Deputados, os jogos online também foram incluídos como modalidade lotérica e autorizados a serem oferecidos em formato de quota fixa.
Atualmente, o Governo Federal trabalha na publicação das portarias necessárias para regulamentar assuntos secundários, como publicidade, processos de licenciamento, credenciamento de meios de pagamento e certificação de laboratórios.
Entretanto, estima-se que a falta de iniciativa coesa do Governo Federal na abordagem de questões regulatórias entre 2018 e 2022 resultou em uma perda significativa para os cofres públicos, no valor de bilhões de reais (BRL) por ano. Além disso, levou ao desenvolvimento de um mercado instável que contribuiu ainda mais para vários escândalos de manipulação de resultados que surgiram nos anos seguintes. Não é de surpreender que cada Estado tenha tomado a iniciativa de regular os seus próprios mercados.
DISTINÇÕES TERMINOLÓGICAS, EXPLORAÇÃO E PORTARIAS
Para compreender o desenvolvimento da discussão, faz-se necessária uma explicação terminológica. Em 2018, a promulgação da Lei 13756 autorizou a exploração de apostas esportivas de quota-fixa sob modalidade lotérica. A modalidade lotérica é entendida como o arcabouço normativo que permite à uma entidade da Administração Pública criar um produto lotérico. Por exemplo, as modalidades lotéricas de prognóstico numérico, prognóstico esportivo, loteria de bilhete, etc. Os produtos lotéricos são definidos e entendidos diante da comercialização de uma modalidade lotérica. Em exemplo, a modalidade lotérica de prognóstico numérico oferece diversos produtos lotéricos, como a Mega-Sena, Dupla-Sena, Lotomania, etc.
No mesmo sentido, a Lei Federal 14790/23 deixou claro que os jogos de cassino online, definidos como eventos de jogos virtuais online, são uma modalidade lotérica que será permitida pela legislação federal. A expectativa é que o Governo Federal publique portaria específica sobre jogos online, estabelecendo os requisitos técnicos dos jogos autorizados até junho de 2024.
EXPLORAÇÃO COMERCIAL E REGULAMENTAÇÃO DAS MODALIDADES LOTÉRICAS PELOS ESTADOS NA PRÁTICA
Através do movimento de contestação, o caso foi levado ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2020, o STF decidiu, por unanimidade dos votos, que a União Federativa não teria exclusividade na exploração comercial das modalidades lotéricas. De acordo com a decisão, os estados-membros e o Distrito Federal podem: (1) explorar comercialmente as modalidades lotéricas, e (2) regulamentar as atividades que envolvam a exploração destas modalidades e produtos lotéricos. Entretanto, a decisão também afirma que a competência para legislar sobre modalidades lotéricas, ou seja, definir modalidades lotéricas passíveis de exploração, é exclusiva da União.
Desde a decisão do STF, as loterias estaduais têm desempenhado um importante e proeminente papel na regulamentação de suas atividades. As loterias dos estados do Rio de Janeiro, Paraná, Maranhão, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e Paraíba são apenas alguns exemplos. Da mesma forma, alguns estados ainda não operam loterias estaduais, como no caso de Rondônia, Acre, Pará, Bahia, entre outros. Dentre as entidades federativas estatais que já iniciaram as operações de loterias, apenas os estados do Rio de Janeiro e Paraná operam apostas esportivas de quota-fixa. Minas Gerais e Paraíba estão, atualmente, em processo de regulamentação desse tipo de modalidade lotérica.
Atualmente, a Loterj, Loteria do Estado do Rio de Janeiro, já credenciou cinco operadoras privadas de apostas esportivas para trabalhar no estado, e conta com outras cinco operadoras em processo de credenciamento. A Lottopar, Loteria do Estado do Paraná, conta com quatro empresas também credenciadas e devidamente homologadas. Ambas as loterias abriram novos editais de credenciamento de operadoras privadas para diferentes modalidades lotéricas entre março e abril de 2024. Aqui se encontra o embate.
EMBATES TERRITORIAIS E RESTRIÇÕES NA PUBLICIDADE
Em março de 2024, a Lottopar entrou com uma ação popular na 4ª Vara de Fazenda Pública do Rio de Janeiro contra a Loterj sob a acusação de que uma recente retificação do edital de credenciamento permitia as operadoras licenciadas atuar em todo território brasileiro, sem impor limites territoriais à exploração. A Lottopar percebeu esta alteração como uma violação dos regulamentos estabelecidos que poderia potencialmente impactar negativamente seus interesses comerciais e a indústria.
De acordo com a retificação do edital, “o sistema deverá possuir capacidade de controlar e confirmar que o apostador declara e concorda que a efetivação das apostas online sempre será considerada realizada no território do Estado do Rio de Janeiro, para todos os efeitos e finalidades, inclusive fiscais e legais, independentemente da geolocalização do IP ou do dispositivo de origem da aposta”.
Alguns dias após a Lottopar ajuizar a ação, o Ministério da Fazenda emitiu uma notificação à Loterj demandando que o processo de credenciamento fosse suspenso até que a entidade atualizasse o seu edital e introduzisse requerimentos relativos à restrição das operações ao seu respectivo território. O Ministério, ainda, deu um prazo de 15 dias para receber uma resposta e advertiu que levaria o caso à Corte caso a Loterj não cumprisse com a notificação.
A Loterj, por sua vez, emitiu um comunicado público (e não uma resposta direta ao Ministério da Fazenda) assegurando que não havia erros ou irregularidades legislativas ou fiscais em seu edital. De acordo com a nota divulgada, “não há qualquer trespasse, seja materialmente, seja juridicamente, dos limites territoriais estaduais, sendo a atividade integralmente concentrada – e.g. situada, prestada e consumida – no território do Rio de Janeiro, para todos os fins”.
Como base argumento-legislativo, afirmou que a comercialização de serviços lotéricos virtuais é respaldada pela lei complementar 116/2003, que estabelece que “o serviço considera-se prestado, e o imposto, devido, no local do estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador (…)”. Após a emissão deste comunicado, não houve manifestações públicas por parte da Lottopar ou do Ministério da Fazenda.
A Lei Federal 14790/23 é explícita sobre a proibição da exploração multijurisdicional de loterias. Pela redação da lei, será permitida apenas uma licença estadual ou distrital federal para um mesmo grupo econômico. Além disso, “a exploração e publicidade de loterias pelos Estados ou pelo Distrito Federal realizadas em meios físicos, eletrônicos ou virtuais ficarão restritas às pessoas fisicamente localizadas nos limites de seus distritos ou domiciliadas em sua territorialidade”.
O Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR) emitiu uma declaração sobre o conflito e afirmou que “os atos praticados pela Loterj instauram desordem, suscitam dúvidas desnecessárias e prejudicam o processo de regulamentação da indústria de apostas de quota fixa no Brasil. Eles colocam em risco a efetividade do arcabouço legal consolidado pela Lei Federal nº 14790/23 e trazem insegurança jurídica ao mercado”.
No mais recente desenvolvimento, Dario Carnevalli Durigan, secretário executivo do Ministério da Fazenda de Brasil, sugeriu a criação de um grupo de trabalho para discutir as regulamentações estaduais para as apostas de quota-fixa. De acordo com o anúncio, o objetivo seria garantir coordenação entre as entidades federais e estaduais no processo de regulamentação e prevenir possíveis reduções na coleta de receitas. A iniciativa representa um passo importante porque demonstra a tentativa de inviabilizar possíveis guerras fiscais entre os níveis federal e estaduais que impactariam negativamente na eficiência do mercado. Entretanto, a criação de tal grupo de trabalho ainda não foi confirmada oficialmente.
De qualquer forma, é inevitável que a divergência não acabe e que a discussão evolua ainda mais. Vale ressaltar que o conflito em curso, que atualmente envolve o Rio de Janeiro, o Paraná e o Governo Federal, pode potencialmente ter implicações maiores.
O embate e as divergências apresentadas no caso envolvendo a Lottopar, a Loterj e o Ministério da Fazenda se fazem óbvios quando comparados os custos e os benefícios das operações. No quadro abaixo, apresentamos uma síntese:
CUSTOS, IMPOSTOS E COMPETÊNCIAS JURÍDICAS
Ao comparar os custos de diferentes opções, a diferença torna-se aparente. As operadoras que possam obter uma licença estatal, que lhes permita operar em todo o país a custos significativamente mais baixos e pagar impostos mais baixos do que a opção federal, proporcionariam uma vantagem competitiva distinta e não condições de concorrência equitativas. Considerando as enormes implicações para as receitas estatais e federais, muitos esperam que a falta de uma posição jurídica clara conduza a um caso julgado pelo Supremo Tribunal.
Apesar dos claros incentivos financeiros, também resta saber quantas operadoras usariam uma licença estadual para atingir brasileiros que vivem em outros estados, enquanto a posição jurídica permanece obscura. Além disso, outro ator surgiu na discussão e poderia potencialmente afetar a forma como ela evolui: as loterias municipais. Atualmente, as cidades de Campinas, Guarulhos, Goiás, Cuiabá e Porto Alegre, para citar algumas, têm iniciativas para estabelecer loterias próprias. A criação de loterias municipais não está amparada em nenhuma lei federal ou na decisão do STF citada anteriormente (2020).
Operadoras, fornecedores, estados e o Governo Federal observarão atentamente como evolui a situação da competência estadual versus federal, o que poderá ter implicações de longo alcance para o mercado brasileiro. A expectativa é de que o diálogo através da criação de um grupo de trabalho específico seja efetivo na resolução do conflito.
Não é incomum que os estados tenham competência para jogos de azar, por exemplo, nos Estados Unidos, na Alemanha e na Nigéria, entre muitos outros. Também não é incomum que haja sobreposições ou tensões entre essas competências estaduais e federais. Por exemplo, na Nigéria, o regulador federal, a Comissão Reguladora Nacional das Lotarias (NLRC), e os reguladores estatais, em particular, a poderosa Autoridade das Lotarias e Jogos de Azar do Estado de Lagos (LSLGA), entraram repetidamente em conflito sobre a extensão das suas respectivas autoridades. Em outubro de 2023, a LSLGA emitiu um aviso afirmando que as operadoras que operam em Lagos são “ilegais”, apesar de serem licenciadas a nível federal. A disputa de competência está atualmente a caminho do Supremo Tribunal da Nigéria.
Um exemplo totalmente diferente pode ser encontrado na Alemanha, onde o Tratado Interestadual sobre Jogos de Azar de 2021 foi considerado como uma acomodação política entre os estados alemães. No entanto, em termos de impacto prático, o Tratado é considerado por muitos peritos da indústria e jurídicos como incapaz de canalizar os intervenientes para o mercado regulamentado na Alemanha. Embora existam no Brasil diferentes complicações das competências estaduais versus federais, conforme detalhado acima, exemplos de outras jurisdições servem para ilustrar as questões que podem surgir deste tema delicado.
OS DESAFIOS PARA UM CENÁRIO FUTURO POSITIVO
O Brasil tem as luzes apontadas para si. O marco regulatório especialmente aguardado está em pleno desenvolvimento. Em suma, os recentes processos regulatórios no Brasil em relação às apostas de quota fixa delinearam um cenário significativamente alterado para a indústria de jogos no país. A promulgação de legislação específica demonstra um compromisso renovado em proporcionar um ambiente seguro e transparente para operadoras e apostadores. No entanto, persistem os desafios, especialmente no que diz respeito à implementação eficaz de um quadro regulatório coeso e coerente entre o Governo Federal e os estados.
É de extrema importância acompanhar de perto a evolução do caso em questão. À medida que a situação se desenrola, é plausível que outros estados ou partes interessadas possam envolver-se. Neste sentido, a TheRegulationService, em colaboração com a sua rede local de advogados especializados, pode ajudá-lo na identificação de potenciais riscos e no acompanhamento de futuros desenvolvimentos neste ou noutros casos de litígio relativos a poderes jurisdicionais.