Lia-se no jornal “O Conimbricense” de 19 de setembro de 1893, o seguinte: “A época balnear é aquela em que mais se desenvolve a devassidão e a imoralidade do jogo (…). Chega-se a presencear o facto inaudito de se verem em Espinho grande número de senhoras, misturadas com os batoteiros às mesas de jogo. Que exemplos de mães de família dão a seus filhos e suas filhas?”. Nesse mesmo ano, na Póvoa de Varzim, na casa de jogo “Café Chinês”, fundada por Carlos Evaristo Félix da Costa, empresário hoteleiro estabelecido no norte de Portugal, filho de uma rica família de emigrantes no Brasil, ouvia-se música e apreciavam-se as bailarinas espanholas.
Enquanto que a Lei de Jogo de 1927 não o dizia, o novo diploma de 1958 estabelece as fronteiras do jogo como mal social ao apelidá-lo como “imoral”! Uma das consequências deste entendimento foi o alargamento do leque das restrições de acesso às salas de jogo. Nomeadamente, os 25 anos como idade mínima para ingresso nas salas de jogo e as restrições de acesso às mulheres casadas. Mesmo após a Revolução de 25 de abril de 1974, e ainda no âmbito da lei de 1969, para acesso à sala de jogo, uma mulher, sendo casada, teria necessariamente de obter “autorização” do marido para frequentar a sala. Mantiveram-se assim na prática, todas as restrições do período do Estado Novo, as quais condicionavam os direitos das mulheres no acesso às salas de jogos dos casinos.
SOBRE DECLARAÇÕES E PERMISSÕES
Apesar que a Constituição da República Portuguesa de 1976 tivesse declarado direitos iguais independentemente do sexo, as mulheres ainda não tinham os mesmos direitos que os homens no que diz respeito ao jogo. As mulheres casadas continuavam a não poder entrar nas salas de jogo sem autorização dos maridos. Note-se que aquelas, mesmo que tivessem profissões liberais (advogadas ou médicas) ou fossem proprietárias ou empresárias, necessitavam sempre da declaração do marido, a dizer, também “por sua honra”, que era casado com aquela senhora. Também o marido, quando entrava acompanhado numa sala de jogo, tinha de declarar que a senhora que o acompanhava era a sua “legítima esposa”. Mais curiosa ainda era a declaração marital e o carimbo AM (Acompanhada do Marido!) que as mulheres casadas, menores de 25 anos (posteriormente, 21 anos), necessitavam de ter aposto no cartão anual de acesso, até perfazerem a idade mínima. Exigia-se também uma declaração “Patronal”, que obrigava a entidade patronal a ter conhecimento de que um seu trabalhador frequentava uma sala de jogo, pelo que muitas mulheres optavam, por compreensíveis razões de privacidade, por uma declaração de “Doméstica”. Nesses casos, as senhoras tinham de preencher uma declaração, no Serviço de Controlo de Identificação dos casinos, na qual declaravam, por escrito e “por sua honra”, que eram “Domésticas” e que não exerciam qualquer atividade que as impedisse de entrar na sala de jogo.
A SITUAÇÃO NOS TEMPOS MODERNOS
Nos últimos 30 anos, e na sequência da entrada em vigor da Lei de Jogo de 1989, as mulheres entraram, em crescendo, no mundo do jogo, tanto como jogadoras como nas várias profissões ligadas ao mesmo. Na profissão de croupier trouxeram com elas um acrescento de graciosidade e de estética às salas. Ei-las a fixar o verde-esperança de uma mesa de jogo, a acompanharem cada golpe na roleta e a marcarem de forma sempre distinta a sua presença feminina na sala de jogo. As três primeiras mulheres a entrarem na profissão em Portugal, Zélia Fonseca, Ana Luzia Alves e Isabel Dias, fizeram o seu ingresso no dia 1º de dezembro de 1989, no Casino Estoril. Foram as primeiras mulheres croupiers em Portugal.
No ano seguinte, o casino de Vilamoura recebeu as suas primeiras profissionais de banca e assim foi acontecendo um pouco por todos os casinos portugueses, abrindo as portas às posteriores gerações de mulheres croupiers em todos os casinos. As três corajosas pioneiras ingressaram muito jovens num setor de atividade totalmente dominado por homens, mais velhos e mais experientes, e vingaram numa profissão exclusiva de homens até então! Num mundo de piropos que hoje muito provavelmente caberiam na categoria de assédio. Num mundo em que, designadamente, a licença de maternidade não era bem vista nem compreendida, lutaram e conseguiram manter o direito às gratificações durante esse período de ausência. Não, a maternidade não era e não é uma doença!
A lei atual já confere também aos homens, e ainda bem, o direito e a responsabilidade do período de ausência em licença de paternidade, cumprindo a igualdade de direitos independentemente do sexo, prevista na Constituição da República Portuguesa. Deixou, pois, e ainda bem, de ser inaudito “presencearmos um grande número de senhoras nas salas, misturadas com os ‘batoteiros’ às mesas de jogo”.
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*Advogado de formação, José Eduardo Deus é Mestre em Gestão e Turismo (Universidade de Aveiro, 2004). Licenciou-se em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa em 1983, concluindo em 1994 uma Pós-Graduação em Direito da Comunicação, pela Universidade de Coimbra, em Portugal.
Ele é Inspetor de Jogos há 31 anos. Também foi conferencista no país e no estrangeiro sobre temas relacionados com o direito jogo e turismo, tem ministrado vários cursos sobre Direito do Jogo, na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Tem vários artigos e livros publicados. Entre eles, foi co-autor do primeiro livro sobre o jogo em Portugal, em 2001, enquanto, em 2016, publicou também a co-autoria o livro “Fortuna ou Azar – Dupla Improvável”. Atualmente, é editor e responsável pelo site www.ojogoemportugal.pt.