As palavras fusão e fluidez no mundo do gambling (jogos de fortuna ou azar) e gaming (jogos electrónicos) vão adquirindo uma importância cada vez maior. Tentaremos explicar o porquê.
a) Fusão: há uma invasão cada vez mais frequente dos mecanismos e estruturas dos jogos de fortuna ou azar nos vídeojogos e nas plataformas por estes utilizadas. Já tive oportunidade de falar aqui do problema das Loot Boxes e Skins associadas a vídeojogos e que têm vindo a justificar a adoção, por diversos países, de regulamentação restritiva e mesmo de proibição quando se permite o seu uso em jogos de fortuna ou azar ou, de qualquer outra forma, se permite a obtenção de ganhos patrimoniais aos jogadores. Recentemente, e também originado pela “fusão” daqueles dois sectores de actividade, a polémica instalou-se na plataforma Twitch, muito utilizada pelos streamers do mundo dos videojogos, a par de outras plataformas como o YouTube, e cujas audiências florescem. É também aqui que as competições de videojogos (Esports) e as suas estrelas têm uma grande visibilidade. Perante uma audiência, também constituída por menores, que assistem deliciados ao desempenho dos seus ídolos (pretendendo seguir-lhes o exemplo), acresce a necessidade de regras claramente definidas que impeçam o risco de serem transmitidos conteúdos impróprios para estas idades, seja ao nível da publicidade, seja ao nível das imagens transmitidas, seja ainda quanto ao incitamento a comportamentos desadequados. Ora, estas plataformas têm vindo a ser cada vez mais utilizadas por streamers que se mostram, não apenas a jogar vídeojogos, mas também jogos de fortuna ou azar, sendo, em vários casos, patrocinados por operadores deste sector. A visualização de um destes vídeos permite perceber que, na mesma emissão, o streamer joga videojogos alternando com jogos de fortuna ou azar, e assim sucessivamente, enquanto estão visíveis, durante toda a emissão, banners a anunciar casinos online, ofertas de jogo e promoções. Ora, a audiência de videojogos populares entre as crianças não pode ser a mesma que a dos jogos de fortuna ou azar.
QUESTÕES LEGAIS A CONSIDERAR
Esta transmissão suscita vários problemas jurídicos ainda pouco abordados, quanto à sua legalidade. Atividades ilegais não são permitidas pelas condições de uso do Twitch. Mas ainda que os operadores de jogo de fortuna ou azar onde jogam os streamers, ou que os mesmos anunciam, disponham de licença para tanto e observem as restantes condições legais impostas pelo Twitch (que não impedem estes livrestraming), certo é que a quase ausência de fronteiras da web permite a sua visualização e interacção com pessoas em qualquer parte do mundo, mesmo onde estas actividades são interditas. Isto implica que as entidades reguladoras não podem estar atentas apenas às páginas web dos casinos, mas também ao que é transmitido nestas plataformas. Com efeito, em muitas jurisdições, o livestreaming de jogos de fortuna ou azar não será permitido. E mesmo que seja, é necessário um olhar muito atento. Há notícia de que a entidade reguladora portuguesa já atuou neste domínio. Com efeito, os comentários produzidos pelos streamers, durante a emissão, poderão violar as regras de publicidade dispondo, muitos países, de disposições semelhantes ao Código de Publicidade Português que determina que a publicidade de jogos e apostas deve respeitar, nomeadamente, a proteção dos menores (…) não apelando a aspetos que se prendam com a obtenção fácil de um ganho, não sugerindo sucesso, êxito social ou especiais aptidões por efeito do jogo, nem encorajando práticas excessivas de jogo ou aposta sendo expressamente proibida a publicidade de jogos e apostas que se dirija a menores. Como garantir a observância desta regra em toda e qualquer emissão de livestreaming de jogos de fortuna ou azar e proteger os menores?
Com efeito, independentemente da regulamentação dos jogos de fortuna ou azar diferir de país para país, ao nível das regras aplicáveis e jogos permitidos, é praticamente universal a proibição de acesso de menores a este tipo de jogos e o seu aliciamento para tanto. O Twitch apenas determina, nas condições legais de uso, que a plataforma não pode ser utilizada por menores de 13 anos e que os restantes menores a podem utilizar desde que sob a supervisão dos pais ou tutores legais, mas sabemos o quão limitado isto é em termos práticos.
Dito isto, é de saudar que a plataforma Twitch tenha determinado que, a partir de hoje, 17 de agosto, não podem ser divulgados códigos e links de operadores de jogos de fortuna ou azar no livestreaming, com vista a evitar danos e fraudes “criadas por serviços questionáveis de jogos que patrocinam conteúdo na Twitch”. Mas não proíbe este tipo de livestreaming. Promete ainda a monitorização da situação e actualização da abordagem, se necessário. Resta saber se, no futuro, esta actividade será proibida ou se serão adotadas medidas adicionais com vista a proteger os menores. A nova medida adotada pelo Twitch terá decorrido, em grande parte, da pressão da própria comunidade de streamers, que se tem insurgido contra esta prática por alguns deles, mas que não terá ficado satisfeita com esta medida por considerá-la insuficiente.
FLUIDEZ E PROTEÇÃO AOS CONSUMIDORES
b) Fluidez: mais do que o jogo territorial, a emergência e consolidação do jogo online, em praticamente todo o mundo, implica a quase completa ausência de fronteiras, permitindo-nos jogar em páginas web alojadas em qualquer país sem sairmos da nossa casa. A regulamentação destes dois sectores de actividade, ao nível da União Europeia, não foi ainda eleita como prioridade. Existem apenas algumas normas aplicáveis, como sejam, quanto a estes últimos, as normas relativas ao branqueamento de capitais, mas também as normas de protecção dos consumidores aplicáveis a ambas. Assim se justifica que a European Gaming And Betting Association (EGBA), assim como vários Estados Membros e representantes da indústria, tenham requerido à Comissão Europeia que reative o mandato do Grupo de Peritos da Área do Jogo, com vista a permitir uma plataforma comum que alcance, nomeadamente, uma protecção reforçada dos direitos dos consumidores num mercado, por natureza, cross-border e que requer soluções comuns. O combate ao jogo ilegal, bem como o problema acima enunciado, são, sem dúvida, uma das dificuldades que exige esta concertação comum.
A evolução nestas matérias não para. A fluidez e as formas de fusão do gaming com o gambling são cada vez maiores, exigindo-se uma maior harmonização da legislação comunitária e uma actualização constante por parte do legislador e regulador. Ainda que seja de louvar a autorregulamentação por parte do sector, a protecção do consumidor, em termos mais abrangentes, será mais viável se a legislação consagrar normas abertas e poderes reforçados que permitam que o regulador ou o responsável governamental haja de forma célere.