O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) pronunciou-se muito recentemente sobre a qualificação dos jogadores de póquer online como consumidores/profissionais (a). No caso concreto, um operador de jogo, com sede em Malta, aplicou a sanção de apropriação de (avultados) prémios auferidos pelo jogador, domiciliado na Eslovénia, por este ter criado uma segunda conta de utilizador, em violação das condições do contrato de prestação de serviços de jogo online (unilateralmente impostas pelo operador). Perante a oposição do jogador, é necessário saber onde deveria ter intentado a ação judicial. De acordo com o Regulamento Comunitário aplicável (b), se o jogador for considerado consumidor, poderia intentar a ação judicial no seu país de origem: uma forma de lhe conceder uma posição de proteção face à contraparte economicamente mais forte (o operador de jogo); se for considerado profissional, terá de intentá-la no país onde a empresa está sediada. Nos termos do contrato, seriam competentes os órgãos jurisdicionais da sede da empresa.
SOBRE O DILEMA JOGADORES/CONSUMIDORES
Para decidir a questão prejudicial, o TJUE teve de analisar a atividade de um jogador de póquer que, de acordo com as circunstâncias concretas e comummente, seria facilmente classificado como profissional. Aliás, no meio, o próprio se autointitulava como tal. Vejamos o que levou o TJUE a considerar o jogador em causa como consumidor, mesmo tendo partido do pressuposto de que, para efeitos do Regulamento comunitário em causa, a noção de “consumidor” deve ser interpretada de forma restritiva:
– montante dos ganhos provenientes do jogo de póquer (em cerca de 13 meses, o jogador ganhou €227.000): o TJUE considerou que, não obstante as quantias auferidas pelo jogador lhe permitissem viver do jogo de póquer, há mais de três anos, este não é, em si, um elemento determinante para a sua qualificação como consumidor ou profissional. Com efeito, considerou que as regras de competência jurisdicional não podem depender dos montantes ganhos pelo consumidor, pois dessa forma passariam a ser imprevisíveis, contrariamente ao legalmente pretendido, tanto mais que o jogo de póquer, sendo um jogo de fortuna ou azar, não permite prever antecipadamente o ganho ou a perda de montantes que podem ser significativos;
– conhecimentos e competência do jogador: o TJUE entendeu que o conhecimento e informações que o jogador detém sobre o jogo de póquer, e que lhe permitem auferir elevadas quantias, não lhe retiram a qualidade de consumidor. Para o tribunal, o conceito de consumidor é objetivo e definido por oposição ao de operador económico, ou seja, por aquele ser a parte mais fraca;
– regularidade da atividade de jogador de póquer: não obstante saber-se que o jogador jogava, em média, cerca de nove horas por dia útil, e muito embora o TJUE tenha reconhecido que a regularidade de uma atividade pode ser um elemento a ter em consideração para a qualificação de um profissional, por oposição a um consumidor, a sua posição não foi alterada. Para tal, o TJUE considerou relevante o facto de a atividade do jogador não dar origem à venda de bens ou à prestação de serviços, ou seja, este não propunha, a terceiros, serviços ligados com a sua atividade;
– o jogador não declarou oficialmente esta atividade.
Em suma, para o TJUE, um jogador de póquer online deve ser protegido como parte mais fraca (consumidor), mesmo que se dedique exclusiva ou maioritariamente a este jogo, tenha dele um conhecimento profundo e dele obtenha ganhos para além do que é comummente entendido como sendo necessário para o sustento de uma pessoa. Esta conceção pode estar conectada com o facto de o TJUE ter considerado o póquer como um jogo de fortuna ou azar: este tipo de jogos, dada a sua natureza, têm resultados contingentes e incertos, considerados incompatíveis com o estatuto de profissional e com a obtenção de rendimentos, de forma regular, que permitam o sustento do jogador. Esta conceção tem também reflexos, naturalmente, na política de tributação fiscal dos rendimentos auferidos no jogo.
ABORDAGEM DIFERENTE PARA POKER NO BRASIL E EM PORTUGAL
Como é consabido, a qualificação do póquer como jogo não é consensual. Com efeito, vejamos a diferente qualificação do póquer no Brasil e em Portugal, não obstante a noção de jogo ser idêntica em ambos:
– em Portugal, de acordo com a Lei do Jogo e com o Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online, jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte (são permitidos mediante concessão/licença). O póquer é considerado um jogo de fortuna ou azar nos casinos físicos, mas também no jogo online, mesmo em modo de torneio;
– por seu turno, no Brasil, e nos termos da Lei das Contravenções Penais, jogos de azar são os jogos em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte (são proibidos). O póquer não é considerado um jogo de fortuna ou azar razão pela qual é permitido, também em modo de torneio.
O fator decisivo para a qualificação do póquer como jogo, ou não, resulta do entendimento do que seja este jogo: será jogo de fortuna ou azar se se entender que depende sobretudo da sorte; já o contrário, resultará do facto de se entender que o póquer depende sobretudo da perícia/estratégia do jogador. Por fim, veja-se que a extrapolação do conceito abrangente de consumidor adotado pelo TJUE quanto a jogadores de póquer online, e para efeitos de decidir a jurisdição nacional competente, poderá vir a ter repercussão, em casos futuros, quanto à forma como lhes será aplicada a restante legislação comunitária de proteção dos consumidores, como seja a relativa às práticas comerciais desleais.
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Notas de rodapé:
(a) Acórdão de 10 de dezembro de 2020, Proc. C-774/19 (cfr. http://curia.europa.eu/).
(b) Regulamento relativo à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial (cfr. atualmente em vigor: Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012).
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*Licenciada em Direito e pós-graduada em Direito Administrativo e em Direito da União Europeia, Carla Vicente especializou-se, nos últimos dez anos, em Direito do Jogo, especialmente quanto à proteção de jogadores e à adoção de uma política de jogo responsável. Como Assessora Jurídica da Provedora de Justiça em Lisboa, Portugal, analisa queixas de jogadores e de trabalhadores do setor do jogo contra operadores de jogo, bem como contra o Serviço Regulador (SRIJ), e mesmo contra as disposições legais aplicáveis. Graças ao seu trabalho árduo e valioso, Vicente foi capaz de alcançar significativas alterações em práticas irregulares, algumas delas precedidas de alterações legislativas propostas por este órgão do Estado.